Uma lição de trânsito vinda direto dos antigos estúdios da Disney
Em tempos de discursos morais engarrafados e pedagogia anestesiada, um velho desenho da Disney reaparece como um farol inesperado. “Motor Mania”, estrelado pelo Pateta em 1950, é mais que um clássico: é uma aula de cidadania, uma crítica social — e um grito por respeito no trânsito.
Recentemente resgatado pelo canal Clássicos da Disney, o curta-metragem mostra como o pacato cidadão George se transforma, ao entrar em seu automóvel, no perigoso e impaciente Mr. Wheeler. Ao girar a chave de ignição, muda também sua personalidade: a gentileza se converte em fúria, o respeito em arrogância, a civilidade em desrespeito.
A sátira, setenta anos depois, continua dolorosamente atual. Quem nunca viu alguém se tornar outro ao volante? O Brasil vive uma verdadeira epidemia de impaciência. Basta uma leve demora no semáforo para que buzinas disparem como metralhadoras. Estacionar sobre faixas de pedestres, ultrapassar pela direita ou transformar ciclovias em atalhos ilegais se tornou rotina.
A imagem que acompanha este artigo retrata exatamente isso: o ser humano dividido entre o cidadão urbano e o motorista agressivo. À esquerda, vemos um ciclista; à direita, pedestres. No centro, um sujeito de feições duplas — dividido entre a razão e o instinto, a empatia e o egoísmo. Uma metáfora gráfica perfeita para o nosso cotidiano nas ruas.
Mas o que explica essa metamorfose? Estaríamos todos emocionalmente despreparados para lidar com a convivência no espaço público? O automóvel, além de veículo, virou extensão do ego. Protegidos por vidros escuros e lataria robusta, muitos se sentem invisíveis, imunes às consequências de seus atos. É a “invisibilidade moral” que conduz a tragédias diárias.
Segundo o último levantamento do Ministério da Saúde, em 2023, o Brasil registrou 33.894 mortes no trânsito — uma média de mais de 90 vidas perdidas por dia. A violência no trânsito é hoje a segunda principal causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos no país, atrás apenas da violência armada.
Além disso, dados do Observatório Nacional de Segurança Viária revelam que 74% dos acidentes com mortes envolvem comportamentos imprudentes como excesso de velocidade, uso do celular ao volante, embriaguez ou desrespeito às leis básicas de circulação.
Enquanto isso, países como Suécia e Japão reduziram drasticamente seus índices com políticas públicas consistentes, infraestrutura segura e — sobretudo — educação para o respeito. A diferença não está apenas na fiscalização, mas na cultura: lá, pedestre não disputa espaço com carros; ciclistas não pedalam com medo; o motorista sabe que não está sozinho na rua.
É aí que “Motor Mania” ressurge como ferramenta educativa. O desenho diverte, mas também incomoda — e nos faz pensar. Exibi-lo em escolas, autoescolas e campanhas de conscientização pode ser mais eficaz do que toneladas de cartilhas esquecidas em gavetas.
O trânsito é o espelho da sociedade. Onde há impunidade, brota a imprudência. Onde falta empatia, sobra violência. O desafio não é só técnico, é ético. Mais do que vias e semáforos, precisamos de uma revolução comportamental. E ela começa com um simples gesto: reconhecer que, ao dirigir, continuamos sendo cidadãos — com deveres, limites e responsabilidades.
Assista ao clássico da Disney aqui:
https://youtu.be/sNRJSeA9fM8?si=5e9NkosxMoOyyMX5
Jornalista, Mtb 0083569 / SP/BR, Doutor em Ciências Humanas e Mestre em História Econômica pela USP, Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis – Cesusc, Membro Titular da Academia Brasileira de História, Comendador da Veneranda Ordem dos Cavaleiros da Concórdia, foi Prof. Adj. Dr. da UFSC, criou e coordenou o Programa PARE do Ministério dos Transportes, ex-Diretor do Departamento Nacional de Trânsito – DENATRAN, Secretário-Executivo do GERAT da Casa Civil da Presidência da República, Conselheiro Consultivo do Movimento Nacional de Educação no Trânsito – MONATRAN e TWO FLAGS POST – Publisher & Editor-in-Chief.