Vivemos um tempo em que o trânsito já não é apenas um fenômeno das ruas, mas um espelho do que nos tornamos como sociedade digital. As avenidas, antes povoadas por buzinas e gestos humanos, agora se cruzam com códigos invisíveis que comandam semáforos, calculam trajetos e monitoram comportamentos. A inteligência artificial, essa nova força que traduz o pensamento humano em lógica computacional, começa a decidir o fluxo das cidades e, silenciosamente, o ritmo das nossas vidas.
Mas há um perigo sutil quando o homem, cansado de errar, decide entregar às máquinas o dever de acertar. Porque delegar à IA o controle do trânsito não é apenas buscar eficiência; é renunciar a uma parte essencial do juízo moral. A máquina pode prever colisões, mas não compreende o valor de uma vida. Pode equilibrar fluxos, mas não reconhece o gesto de um pedestre idoso que hesita ao atravessar. É nessa fronteira tênue entre o cálculo e a compaixão que se desenha o futuro da mobilidade humana.
O trânsito é o laboratório da convivência. Nele se encontram a pressa, o ego e a esperança; nele se revela, de forma nua e imediata, o grau de civilização de um povo. Se o motorista ignora o sinal, se o motociclista avança pela contramão ou transforma a calçada em pista de fuga, se o ciclista se acredita acima da regra comum, se o pedestre não confia na faixa, não é apenas o trânsito que está em colapso. É a confiança social que se desintegra. E confiança é o que a tecnologia não pode programar.
Nos próximos anos, veículos autônomos circularão lado a lado com condutores de carne e osso. A cidade será um organismo híbrido, meio humano, meio algoritmo. Caberá a nós decidir se a inteligência artificial será um instrumento de equilíbrio ou mais um espelho das nossas falhas. Porque nenhuma tecnologia é neutra. Ela reflete o espírito de quem a criou e o propósito de quem a utiliza.
Há, portanto, uma nova forma de cidadania em construção: a cidadania algorítmica. Ela exige não apenas conhecer as leis do trânsito, mas compreender as leis invisíveis da era digital. Exige que cada cidadão entenda que, quando compartilha dados, também compartilha poder; e que o direito de ir e vir, tão sagrado quanto o direito à vida, não pode ser mediado por códigos opacos e decisões automatizadas.
O desafio é imenso. Educar para o trânsito sempre foi educar para a convivência. Agora, é também educar para o uso ético da tecnologia. A inteligência artificial pode salvar vidas, mas apenas se for guiada pela inteligência moral.
O futuro das ruas, como o da própria humanidade, dependerá de um princípio simples: que o homem continue no comando. Não porque a máquina seja imperfeita, mas porque a consciência ainda é insubstituível.
Jornalista, Mtb 0083569 / SP/BR, Doutor em Ciências Humanas e Mestre em História Econômica pela USP, Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis – Cesusc, Membro Titular da Academia Brasileira de História, Comendador da Veneranda Ordem dos Cavaleiros da Concórdia, foi Prof. Adj. Dr. da UFSC, criou e coordenou o Programa PARE do Ministério dos Transportes, ex-Diretor do Departamento Nacional de Trânsito – DENATRAN, Secretário-Executivo do GERAT da Casa Civil da Presidência da República, Conselheiro Consultivo do Movimento Nacional de Educação no Trânsito – MONATRAN e TWO FLAGS POST – Publisher & Editor-in-Chief.